Jafar Panahi volta ao Brasil com Foi Apenas um Acidente

Livre da teocracia iraniana, Jafar Panahi volta ao Brasil com “Foi Apenas um Acidente” – 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Uma família iraniana viaja de carro de volta para casa – a mulher grávida, vestida com trajes tradicionais, tenta aplacar a inquietude da filha enquanto o marido dirige. A rua escura faz com que o carro acidentalmente atropele um cão vira-lata. O esposo sai do carro, lida com a situação e volta ao volante. “Você matou o cachorro”, diz a filha agora triste, ao que a mãe responde: foi a vontade de Deus. Por fim, a menina retruca: “Você matou o cachorro. Deus não tem nada a ver com isso.” Essa cena introdutória aparentemente simples esconde um significado para o diretor Jafar Panahi, perseguido e preso pelo regime iraniano em nome de “deus”. Apresentado ao público brasileiro pela primeira vez em 1995, o diretor participou duas vezes da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, mas ao ser acusado de propaganda contra o regime, foi proibido de filmar ou de sair do Irã por 20 anos.

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, Foi Apenas um Acidente é uma mistura inteligente de crítica ao governo com personagens e cenas que flertam com o cômico. Eghbal, o pai de família da cena já descrita, pede ajuda em uma fábrica, afinal o atropelamento gerou um problema no carro, que parou de funcionar. Vahid, um funcionário que se encontra nos fundos da pequena fábrica, ouve os passos de Eghbal e entra em pânico. Seria esse o homem que o torturou? O andar arrastado de Eghbal convence Vahid que sim, portanto um plano de sequestro é cogitado e executado. Mas afinal, aquele homem é mesmo o torturador? Na tentativa de buscar uma certeza, ele é apresentado a outras vítimas: Shiva, Goli e Hamid. Cada uma delas teve uma experiência traumática com o soldado “manco”: Shiva o reconhece pelo cheiro, Goli foi abusada durante sua detenção e reconhece a voz, enquanto Hamid não tem dúvidas sobre a aparência do homem.

A questão que se levanta é: mesmo que esse seja o torturador, deveriam eles usar os mesmos métodos contra ele? Isso não os tornaria tão perversos quanto a pessoa que agora carregam na van? Cada personagem representa um pouco de Panahi, sendo essas perguntas as mesmas que ele se fez durante sua luta contra o regime. A genialidade de Foi Apenas um Acidente está na mistura de questionamentos sérios com personagens que muitas vezes beiram o engraçado – um operário, uma fotógrafa de casamento com os noivos e um cara que estava na rua. Todos passam a existir e a tentar se conhecer dentro do espaço limitado da van, que vai de um ponto a outro enquanto eles tentam decidir o que fazer com Eghbal.

Foi Apenas um Acidente é um filme sobre prisões internas e a dificuldade em achar liberdade e paz. Não importa se Eghbal é ou não o inimigo, o foco da obra são as emoções que vem à superfície de cada personagem, e como eles reagem a isso. Além de vencedor da Palma de Ouro em 2025, Panahi também possui em seu currículo um Urso de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Berlim pelo seu filme Taxi (2015) e um Leão de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Veneza para O Círculo, de 2000.

Jafar Panahi compareceu à 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Arquivo Pessoal.
Jafar Panahi compareceu à 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Arquivo Pessoal.