A Substância (2024), escrito e dirigido por Coralie Fargeat.

Em A Substância (2024), o corpo é algo repulsivo que contamina um mundo de plástico

Pode parecer exagero para muitos, mas o mundo de A Substância, escrito e dirigido por Coralie Fargeat, não surge simplesmente da fantasia de uma diretora que muitos chamariam de “ativista” — palavra essa que perdeu qualquer significado no ambiente das redes sociais. Um dos temas principais dessa obra é o olhar masculino, e como muitas mulheres são coagidas a atender as expectativas de todos os homens com quem convivem. A personagem principal do filme, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), passa por situações que eu já vi em ambiente de trabalho: certa vez, um dos sócios de uma empresa para a qual eu trabalhava falou para uma nova contratada, durante almoço de negócios, que ele achou um estudo que dizia que mulheres menstruavam por vontade própria, e que ele ia convencer sua então noiva a parar com o ciclo menstrual, para ele não ter de lidar com aquilo. Eu estava naquele almoço, e fiquei sem palavras. Essa não foi a única vez que presenciei o favoritismo e a presunção masculina em ambiente empresarial, mas foi essa cena que me veio à cabeça quando vi o mundo que Elisabeth habita. Ele é real, e é o foco de A Substância.

O filme como um todo parece uma ode a várias outras obras não só de terror, mas também dramas e comédias. A personagem de Elisabeth é em grande parte a versão atualizada de Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses (1950) – Norma, grande estrela do cinema mudo, não foi capaz de transicionar para o novo formato do cinema, e por isso é tratada como algo do passado. Ambas vivem num mundo que anseia pelo novo, e esse anseio vem acompanhado pela demanda de rostos jovens. Ao deixar o olhar masculino de lado e focarmos apenas na personagem principal, podemos também comparar Elisabeth com Madeline e Helen de A Morte Lhe Cai Bem (1992), do grande Robert Zemeckis. A rivalidade entre Madeline e Helen é tão grande e sem sentido que elas chegam ao ponto de vender a própria alma, e como todo contrato faustiano possui uma cláusula escondida, a poção que trouxe juventude fará com que seus corpos caiam aos pedaços com a passagem do tempo.

A Substância (2024), escrito e dirigido por Coralie Fargeat.
Cartaz de A Substância (2024), escrito e dirigido por Coralie Fargeat.

Ao ser demitida por ser considerada velha e antiguada, Elisabeth é confrontada com a possibilidade de ingerir a “substância”, algo que promete fazê-la voltar ao holofote. Pouco se sabe sobre a tal substância, porém isso não a impede de correr o risco, afinal a vida no palco é a única que ela conhece. O que ela não imaginava é que a tal substância é capaz de criar um novo ser a partir de seu hóspede: em uma cena que serve como presságio para todo o terror corporal que está por vir, uma nova pessoa emerge de suas costas, essa jovem que surge é uma extensão de Elisabeth — algo como um alter ego — e é aqui que o terror se inicia. Esse novo ser, de pele macia e corpo escultural chama-se Sue (Margaret Qualley), e ela não perde tempo em tomar posse de tudo que pertencia ao antigo “eu”. As regras de Mefistófeles determinam que, para tudo dar certo, cada uma das partes precisa alternar as semanas – enquanto uma vive, a outra fica em estado vegetativo por sete dias. Será que esse arranjo pode realmente dar certo?

Além da temática feminista, outro ponto alto de A Substância é sua estética: Aqui podemos fazer referência à vários filmes de terror, sendo que o mais homenageado é sem dúvidas O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick. O uso de espaços liminares com cores intensas e simetria é uma forte marca visual do diretor, e Fargeat se apropria disso de forma incrível. Outro diretor que vem em mente é David Cronenberg, com sua lista nada curta de filmes que exploram body horror: Os Filhos do Medo (1979), Scanners (1981), Videodrome (1983), A Mosca (1986), Mistérios e Paixões (1991), entre outros. Em A Substância, o corpo é algo repulsivo que contamina o mundo feito de plástico.

A direção de arte teve inspiração em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick.
A direção de arte teve inspiração em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick. Fonte da imagem aqui.

Assim como no filme Re-Animator (1985), Elisabeth injeta em si um líquido verde neon que nem ela sabe como funciona, e talvez não seja coincidência que o longa foi lançado em plena era do Ozempic, com sua promessa de resultados milagrosos. O tema da beleza a qualquer custo já foi tópico para Coralie Fargeat em Reality+, um curta-metragem produzido dez anos antes, onde pessoas implantavam chips cerebrais para se verem bonitas no espelho. Mas Reality+ conta uma história feliz, o completo oposto da espiral descendente de Elisabeth Sparkle em A Substância. Talvez para Fargeat o mundo tenha se tornado um lugar mais sombrio.

Mesmo com uma carreira curta, sendo esse apenas seu segundo longa-metragem, Fargeat alcançou reconhecimento internacional, e agora as expectativas são altas para essa diretora em ascensão.