Capa do documentário Paris is Burning

Paris is Burning (1990): O Glamour Convive com a Precariedade Nessa Obra Inaugural de Jennie Livingston

Quando olhamos o mundo como ele era na segunda metade dos anos 1980, principalmente entre 1987 e 1989, é comum nos apegarmos a grandes eventos históricos ou então alguma grande fofoca da época sobre qualquer celebridade. Naqueles anos, The Oprah Winfrey Show se tornou um dos maiores programas de televisão dos EUA, cientistas da CERN, na Suíça, começaram seu trabalho naquilo que futuramente seria chamado the World Wide Web, e países comunistas viviam momentos delicados que culminaram no massacre da Praça da Paz Celestial na China e no fim do Muro de Berlim. Mas à margem desse mundo existia um outro, um de indivíduos tão segregados que eles próprios decidiram criar sua organização social alternativa. É da necessidade de registrar essas pessoas que nasce o documentário Paris is Burning.

O mundo paralelo filmado por Jennie Livingston ocupa um lugar no espaço-tempo, localiza-se no Harlem, na Nova York do final dos anos 1980. Muito antes do popular reality show RuPaul’s Drag Race e também das grandes baladas gays da segunda metade dos anos 90 e dos anos 2000, existiam ali, no Harlem, locais de muito glamour misturado com precariedade extrema, onde pessoas LGBT+ majoritariamente negras e/ou latinas encontravam um lugar de acolhimento. É nesse documentário que conhecemos vários nomes como Pepper Labeija, Kim Pendavis, Dorian Corey, Venus Xtravaganza, Willi Ninja e Octavia Saint Laurent, muitos dos quais se colocavam no papel de “mães” adotivas para jovens gays expulsos de casa.

“…Mas quando você é gay, você monitora tudo o que faz. Você monitora como se parece, como se veste, como fala, como age. Eles me viram? O que pensaram de mim?”
Trecho retirado do documentário

Pepper Labeija
Pepper Labeija

Paris is Burning capta um momento muito específico da comunidade LGBT+, afinal o próprio documentário também conta a história de drag queens mais maduras, que acompanharam a mudança de comportamento dos bailes gays dos anos 1970 até aquele momento do final dos anos 1980. Evidenciando uma rivalidade que sempre existiu entre gays jovens e maduros, Dorian Corey conta como os bailes saíram daquilo que chamaríamos de vestidos carnavalescos, passando pelo que as grandes atrizes usavam, até chegar nas roupas usadas pelas maiores modelos do mundo nas passarelas. Esse momento evidencia o contraste entre o sonho e a realidade, pois mesmo que os bailes tenham se tornado “acessíveis”, com competições temáticas de estilo moda country, moda executiva, uniforme militar, garoto escolar, entre outras, era esperado que os competidores usassem peças de marcas caras. E é óbvio que no contexto de pobreza extrema, essas roupas surgiam ou com dinheiro de prostituição ou até mesmo roubo.  

“Até recentemente, muitos dos bailes eram realizados secretamente porque, como descobrimos, muitas das fantasias eram bens roubados. Outras fantasias podem ter sido financiadas pela prostituição.”
Roger Ebert

Outro ponto importante documentado por Jennie Livingston são as várias regras sociais e ambiguidades dentro da subcultura. Aprendemos que muitos dos termos usados até hoje na comunidade LGBT+ já eram comuns naquele tempo. Os que mais se destacam do ponto de vista comportamental são os termos “house” e “realness”. “House” pode ser traduzido de forma literal, significa “casa”, e seria o equivalente a uma gangue. Não que seja uma comparação honesta, pois entre as “casas” não há violência física, mas há sim muita competição. Pepper Labeija, por exemplo, era líder da Casa de Pepper Labeija, esse título vem do mérito de ter participado com sucesso de muitos concursos e bailes. E essa liderança deu a Pepper a oportunidade de agregar drags iniciantes à sua casa, para competir contra outros grupos. Essa competição não se dá apenas nos cenários dos concursos, afinal é nesse exato momento do espaço-tempo que o estilo de dança chamado “voguing” ganha força.

Venus Xtravaganza
Venus Xtravaganza

Enquanto o conceito de “casa” surge da necessidade de acolhimento e aceitação, o termo “realness”, que em tradução livre seria algo parecido com “próximo da realidade”, é um termo que também reflete a necessidade de acolhimento e aceitação, porém de forma crua e até mesmo dolorosa. Em uma competição de “realness”, um rapaz que fosse extremamente feminino se vestiria de forma masculina, mimetizando trejeitos que ele considere heterossexuais. Já que o mundo heteronormativo não os aceita, então eles se vestem de “pessoas comuns”: essa “passabilidade” é vista como algo desejável para quem quer sobreviver fora das paredes do baile.

“…A ilusão, isto é, de ser exatamente aquilo que lhes foi negado; a ilusão de ser aquilo que rejeitaram ou do qual escaparam.”
The Washington Post

Paris is Burning não é apenas um documentário que fala sobre preconceitos: a mensagem central na obra é o marketing do sonho americano. Pessoas periféricas não são apenas vítimas de desigualdade material: por não terem acesso a boa educação, elas são facilmente sequestradas pela propaganda midiática. Essas comunidades do Harlem foram capazes de criar um ambiente não apenas acolhedor, mas que também oferecia uma sensação de orgulho e conquista por meio de seus concursos e troféus. Porém, é evidente que mesmo com a força comunitária, o poder de contaminação do marketing nunca deixou de iludir a mente dos entrevistados. Um dos aspectos mais comoventes da obra é perceber que o sonho do glamour e do status iludia os entrevistados ao ponto de eles não perceberem que o que haviam construído ali, como comunidade, era muito mais valioso, e que nunca mais se repetiria.

“Esta é a América branca. E quando se trata das minorias, especialmente dos negros… nós, como povo, nos últimos 400 anos, somos o maior exemplo de modificação comportamental da história da civilização. Tiraram tudo de nós, e mesmo assim todos aprendemos a sobreviver.”
Trecho retirado do documentário

Capa do documentário Paris is Burning
Capa do documentário Paris is Burning